Adoção nos moldes da exclusão
O campo da adoção trata-se de uma área de atuação valiosa para estudos psicológicos e sociais.Na Vara da Infância e Juventude, trabalha-se, quase que diariamente, com cadastros de adoção e são vários os aspectos que se podem abordar numa avaliação de pretendentes: história pessoal; impossibilidade de serem pais biológicos e seus lutos; projetos e motivações inconscientes para desempenharem a função parental por meio da adoção; escolha da criança e suas características; revelação da história de origem da mesma quando inserida na família substituta; etc.
No entanto, quero me ater especificamente sobre a escolha dos pretendentes referente à cor e raça das crianças a serem adotadas, tema do livro de Ana Maria da Silveira (2005): "Adoção de crianças negras, inclusão ou exclusão?" . Não quero propor idéias inovadoras, quero apenas trazer questões para reflexão sobre nossa prática profissional.
O que leva as pessoas a escolherem (adotarem), preferencialmente, crianças de cor branca?
Importante lembrar que fazemos parte de um país miscigenado que, em sua grande maioria, é composto de pessoas que descenderam de negros africanos, os quais foram escravizados, de forma brutal, durante vários anos. A população negra ainda é, hoje, discriminada cultural e socialmente, sendo que o processo de exclusão acompanha, de certo modo, a história da escravidão.
Uma sociedade, como a nossa, que se constitui por diferentes classes sociais e raciais, onde se cultuam os privilégios, o poder, o prestígio e a ascensão econômica não poderia se portar de maneira diferente.
No campo da adoção, o preconceito e a exclusão também aparecem, inclusive por parte do próprio negro. Silveira (2005) nos traz um dado relevante em sua pesquisa de dissertação de mestrado: casais de cor negra ou parda vêm negando seus próprios valores étnicos e culturais, sendo influenciados pela cultura dominante, a que supostamente detém poder em nossa sociedade.
A autora expõe que "no contexto da adoção há certa tendência a considerar os componentes raciais não só como aspectos pertinentes à identidade de crianças disponíveis para serem adotadas, mas também como meio de selecioná-las". Neste sentido, o negro tem sido desprovido do acesso ao direito de conviver em família, o que amplia espaço ao preconceito racial.
Verificamos, com nossa prática profissional, que o número de crianças negras em abrigos é relativamente alto e existem dois grandes fatores que concorrem para esta realidade: a situação de exclusão social de suas famílias de origem e a dificuldade para serem adotadas.
Ao consultar a pesquisa da colega, surpreendi-me com o número e o tempo de abrigamento dessas crianças em detrimento da situação das crianças de cor branca. E para confirmar a existência da exclusão social dessas crianças, constata-se que aquelas que são adotadas, em sua maioria, estão destinadas a conviver junto a famílias estrangeiras, perdendo o direito de permanecerem no país de origem.
Esta atitude sugere o afastamento dessas crianças negras do seu meio de origem em favor do "branqueamento" da população. Não se valoriza a diversidade e a própria identidade e raiz do povo brasileiro, pois os valores étnicos e culturais do negro são desconsiderados.
Geralmente, famílias brancas alegam que não são "racistas" e que não adotam crianças de outra raça por dificuldade em lidar com a questão de sua exclusão e rejeição em seu próprio meio (família, grupos de amigos, grupos sociais), preocupando-se em enfrentar problemas quanto à integração das mesmas.
Contudo, em relação ao assunto, Hamad (2002) refere que: "a qualidade da identidade da criança adotiva, qualquer que seja sua origem e, com mais forte razão, se ela é diferente, depende do modo como ela é inserida na linhagem psicológica de seus pais adotivos".
Se há uma possibilidade da criança (adotiva) não ser incluída na família substituta como filha legítima, a questão racial pode ser um fator problemático para os pretendentes e para a própria criança. No entanto, o preconceito no que diz respeito à cor da criança também pode mascarar a não aceitação do filho adotivo.
Espera-se que, se a criança tiver semelhanças físicas com os adotantes, será mais facilmente integrada em seu meio do que a criança negra, pois os pais costumam desejar que sua descendência seja semelhante à sua imagem (física e psíquica) e venha a corresponder às suas idealizações.
Neste sentido, a adoção está a serviço de que e para quem?
Esta é uma questão complexa e nos leva a diversas respostas. A criança não está aí para simplesmente atender as expectativas dos adotantes. E as motivações (conscientes e inconscientes) dos pretendentes à adoção são variadas, sendo que podem facilitar ou prejudicar a efetiva inclusão da criança em seu novo meio. Daí a necessidade de nos aproximarmos ao "avesso do desejo", dos projetos manifestos e latentes dos adotantes.
O acolhimento de uma criança (branca ou negra) junto à família adotiva depende principalmente de sua disponibilidade afetiva e dedicação incondicional, embora saibamos que nenhum pai, antes de sê-lo, conhece com toda a certeza se deseja de fato o filho.
Hamad (2002) expõe as dificuldades que o psicólogo na área jurídica enfrenta ao avaliar as questões pertinentes à subjetividade dos pretendentes: "...não existe nenhum critério científico para medir a quantidade de desejo em jogo no pedido de adoção. O que se pode apreciar e avaliar é a maneira como a formulação desse projeto adotivo é inserida num discurso".
Para finalizar, quero reiterar que não é apropriada a idéia de "convencer" casais a adotarem crianças negras, mesmo porque isto poderia incorrer num preconceito ampliado. Creio que as "preferências" e os ideais dos pretendentes mereçam ser respeitados, desde que haja, concomitantemente, uma busca de conscientização e iluminação das suas verdadeiras motivações para serem pais e acolherem uma criança por meio da adoção.
NOTAS:
1- Silveira, A.. M. Adoção de crianças negras: inclusão ou exclusão? São Paulo: Veras Editora, 2005.
2- Hamad, N. A criança adotiva e suas famílias. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2002.