Comentários sobre Aspectos Relevantes do Projeto de Lei nº 1756/03

Autor: 
Francismar Lamenza,
Autor: 
Promotor de Justiça da Infância e da Juventude da Lapa Mestre e Doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP

1. Breves considerações sobre o tema
Há algum tempo atrás, ouvia-se no curso de pós-graduação da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco um professor experiente e dedicado, ilustre Magistrado, afirmando que deveria existir um artigo-mestre na Constituição Federal que dissesse apenas e tão-somente: "cumpra-se a lei". Todas as outras normas seriam daí decorrentes.


Digo isto porque durante muito tempo tivemos longas batalhas que culminaram na edição da Lei nº 8069/90, que se tornou o famoso Estatuto da Criança e do Adolescente, texto básico sobre o qual nos debruçamos tanto diuturnamente para a busca de soluções envolvendo a permanente e eterna crise envolvendo jovens, Estado, família e sociedade.


Procurou-se cumprir essa lei, como disse meu bom professor, durante intermináveis quinze anos. Agora, passado todo esse tempo, em que buscamos incansavelmente a harmonia social e o bem-estar irrestrito de crianças e adolescentes ao enveredarmos pelos caminhos do ineditismo e da vanguarda nas questões, judiciais ou não, vemo-nos surpreendidos pelo Projeto de Lei de nº 1756/03, de autoria do Deputado Federal João Matos (PMDB/SC), que objetiva alterar toda a rotina de trabalho que vivenciamos até hoje e mudar o rumo da vida de inúmeros cidadãos brasileiros que hoje se encontram num limbo social incômodo - o da vida nos abrigos.


Esse Projeto de Lei, que tem como escopo instituir a Lei Nacional de Adoção e dar outras providências correlatas, não vem em boa hora. Causaram-me terríveis surpresas, na qualidade de operador do Direito da Infância e da Juventude, algumas inovações como a classificação da adoção como um direito, a colocação em um plano inferior do direito à convivência famiiliar, a intromissão de terceiros nos processos de cadastramento de interessados em adotar e de destituição do poder familiar e a perigosa falta de condições materiais como um dos elementos para essa destituição, entre tantas outras.


Realmente há a necessidade de repensarmos tudo o que foi colocado até agora pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - ainda mais porque, na velocidade de transformações do mundo contemporâneo pelo avanço das tecnologias, em especial a Internet, a sociedade exige mudanças de comportamento.


Contudo, esse Projeto de Lei apresenta idéias que não se assentam bem no ideário das condutas positivas para a busca do welfare state relativo às crianças e aos adolescentes. O jovem abrigado é tratado figurativamente como uma batata quente nas mãos. A família, como um ente que mais se assemelha a um estorvo. Entes públicos se tornam reféns de prazos sem que se analisem questões subjetivas do ponto de vista casuístico.


Enfim, não se mostrava de todo negativa a pura e simples aplicação do que está atualmente estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Se mudanças devem ter corpo - e hão de ser assim, porque a sociedade assim o demanda - , que sejam melhor discutidas pela comunidade, a fim de que seus membros não sejam penalizados pela edição açodada de um texto que pouco contribui para a mobilização social em termos de busca de alternativas palpáveis para nossos jovens abrigados.


Faço aqui a resenha de alguns tópicos do Projeto de Lei nº 1756/03 que considero de fundamental importância para que tenhamos noção clara do que está sendo posto pelo legislador e de suas conseqüências para toda a sociedade civil numa eventual edição.


2. A conceituação legal da adoção
Na justificativa do Projeto de Lei, encontramos curiosa assertiva, classificando como "inovação" a "definição conceitual do instituto da adoção".


O artigo 1º do Projeto realmente o faz, mesclando tópicos legais já existentes no Estatuto da Criança e do Adolescente, em seus artigos 28 (colocação em família substituta); 41, caput (criação de vínculos de filiação); 47, caput (vinculação por sentença judicial); e 48 (irrevogabilidade da adoção).


Fora esses elementos, que já constam expressamente de dispositivos legais em vigor, ainda há termos desnecessários constantes do artigo 1º, como a conceituação de adoção como sendo resultado de "decisão judicial irrecorrível". Trata-se de uma obviedade, algo perfeitamente dispensável.


Outro fator que se mostra negativo é o fato de que, desde a Antiguidade, com o Código de Hamurábi, passando pelas civilizações egípcia, hebraica e greco-romana, sobrevivendo à era medieval até a época contemporânea, a adoção nunca necessitou de uma definição legal. Tratava-se de um conceito essencialmente doutrinário, não sendo necessário ao legislador precisar os seus limites.


Traz-nos, pois, angústia logo à primeira leitura do Projeto de Lei, o qual bem em seu artigo 1º já traz conceitos desnecessários e termos falhos, fazendo com que os demais tópicos sejam observados com muitas reservas.


3. Adoção - um direito?
O §2º do artigo 1º do Projeto é taxativo ao afirmar que "a adoção é um direito da criança e do adolescente".


Peca o Projeto nesse aspecto, já que almeja substituir o direito à convivência familiar, previsto na Magna Carta (artigo 227, caput), com nova indicação no artigo 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente.


Embora o texto do Projeto se refira a esse "direito à adoção" como algo palpável somente em caso de "impossibilidade de manutenção do adotando na família natural, pela inexistência de proteção afetiva e material", isso nos soa como algo por demais vago e perigoso.


Vago porque a proteção afetiva não pode ser aferida em números, espaço ou tempo. É algo por demais subjetivo, sendo às vezes presente apenas e tão-somente fora das vistas de terceiros. Poderá não ser percebido pela equipe técnica do Juizado da Infância e da Juventude à primeira vista, mas estará lá, presente num olhar entre pais e filhos, num gesto discreto ou num abraço carinhoso.


No que se refere à proteção material, reside o perigo nesse item. De certa forma, fica deixado para segunda leitura o disposto no artigo 23, caput, do Estatuto da Criança e do Adolescente. A falta de recursos materiais passa sim a ser considerada no momento de se pensar em uma eventual propositura de ação de destituição do poder familiar.


Isso sem dizer que, se realmente há uma ausência de proteção afetiva e material, deverá se buscar a inserção do jovem em família substituta, levando-se em conta o grau de parentesco e a relação de afetividade ou afinidade (artigo 28, §2º, da Lei nº 8069/90). Ou seja, logo aí vemos conflito com o disposto no artigo 1º, caput, do Projeto de Lei, que prevê a inclusão em família "distinta da natural", esquecendo-se totalmente dos laços de parentesco, os quais atualmente devem ser levados em consideração quando da análise do caso concreto.


Outro elemento que nos assombra de forma incontestável é a assertiva do Projeto para a qual a adoção é um direito.


Ora conforme lição do saudoso ORLANDO GOMES (Introdução ao Direito Civil, vol. I, Rio de Janeiro, Forense, 1983, 7ª ed., p. 103), "a todo direito corresponde, em tese, uma obrigação". Se para o Projeto a adoção é um direito, então devemos nos questionar qual o dever e a quem cabe essa obrigação.


Pelo princípio da cooperação previsto constitucionalmente (artigo 227, caput), a sociedade, o Estado e a família são responsáveis pelo adimplemento de todos os deveres para com crianças e adolescentes.


Se a família falha em seus deveres fundamentais (havendo portanto a destituição do poder respectivo), então restam o Estado e a sociedade. Estes deverão em tese, segundo o Projeto, se incumbir do dever de colocar os jovens em adoção, a fim de lhes garantir o dito direito.


Todavia, o que ocorreria se houvesse realmente esse suposto direito à adoção por parte do jovem, e tal fosse violado por pura falha estatal ou indiferença comunitária à problemática vivida pela criança ou adolescente em abrigo? Qual seria a sanção aplicável? Sim, porque se há um direito dessa magnitude sendo lesado, há que ser reparado.


Não sendo mais possível a colocação em lar substituto, o que restará para o jovem, violado em seu suposto direito à adoção? Deveria ser responsabilizada a sociedade (e aí se torna impossível, porque não há como ser ela representada em Juízo ou fora dele) ou o Estado (geralmente o alvo preferido, não se vislumbrando a imputação de responsabilidade a outro ente, público ou privado)? E, uma vez apontado o responsável, seria o caso de condenação a uma indenização? São hipóteses impensáveis, prima facie, mas que deverão vir à tona se formos pensar em adoção como um direito.


A adoção, para nós, não se traduz em um direito, mas como uma conseqüência. Havendo a destituição do poder familiar em sentença transitada em julgado, surgirá a necessidade de mobilização do Poder Público, em parceria com a sociedade, para encontrar um modo de abreviar o quanto antes a institucionalização de determinado jovem - e tal somente se dará mediante a adoção.


Finalmente, lembro interessante lição de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA (Instituições de direito civil, vol. V, Rio de Janeiro, Forense, 1999, 11ª ed., p. 250), para o qual "o que a ordem legal considera mais importante é a manutenção da criança e do adolescente na sua família de origem, da qual somente deverá ser afastada em havendo motivo ponderável".


4. Prioridades e preferências no processo de cadastramento de adotantes
Ter-se-á a possibilidade virtual, numa eventualidade de aprovação do Projeto em sua integralidade, de conferir ao Juiz de Direito poder de escolha de critérios para que adotantes possam ser posicionados na lista de interessados em adoção.


Pelo texto do Projeto, o Magistrado terá plenos poderes de estabelecer critérios de preferência para adotar dentre os pretendentes cadastrados (artigo 7º, caput). Também se fala em critérios de prioridade pré-estabelecidos (artigo 39, §2º).


Essa subjetividade é por demais nociva. Com o argumento de que serão escolhidos pais para a criança, e não o contrário, o Magistrado terá em suas mãos dados de ordem bastante maleável que poderão ser utilizados como critérios de preferência/prioridade.


Para o Juiz de uma Comarca, a base de prevalência poderá ser a financeira. Se ultrapassados os limites daquela localidade, o Magistrado do lugar vizinho poderá entender que prevalecerá a idade dos requerentes (maior ou menor). Num terceiro caso, outro Juiz entenderá que deve chamar em primeiro lugar aqueles que tiverem algum problema de fertilidade.


Enfim, as combinações são muitas e todas elas de cunho bastante subjetivo. Afinal de contas, estando a autoridade judiciária livre para definir previamente os critérios (artigo 7º, caput, do Projeto), haverá uma maior dificuldade de determinadas pessoas adotarem, podendo haver uma migração para outras Comarcas (até mesmo sob a forma da malfadada adoção à brasileira).


5. Fixação de prazos: a pressa como inimiga da criança e do adolescente
O Projeto também é pródigo em estabelecer prazos para a resolução da situação dos jovens abrigados.


Curiosamente, esse Projeto falha na questão de crianças e adolescentes que estão pelas ruas, vagando indefinidamente por regiões urbanas, sendo abusadas, vilipendiadas ou simplesmente abandonadas. Todavia, basta que o jovem seja abrigado para que se forme em torno dele um aparato de verdadeira bomba-relógio, estabelecendo-se prazos a todos os que figuram de uma forma ou outra no processo para que se dê solução para a vida do interno no abrigo.


Passo à abordagem dos envolvidos, para que se tenha a noção exata de quem deve fazer o quê e em quanto tempo para garantir o direito da criança ou do adolescente.


I) Os pais


O artigo 1638, inciso IV, do Código Civil fala no descumprimento reiterado dos deveres relativos ao poder familiar por parte dos pais. Ou seja, não basta que se verifique esporadicamente a violação a essas obrigações - a violação deve ser repetida.


Por essa definição, por exemplo, não basta que os pais deixem de prover a educação do jovem quando não o matriculam na escola. Tal deve ser observado de modo renovado. Da mesma forma, se a criança ou adolescente fica pelas ruas e os pais se mostram aparentemente de acordo com a situação, igualmente deverá haver repetição do gesto omissivo.


Pelo artigo 21, inciso IV, do Projeto, a cobrança em relação aos pais se mostra inimaginavelmente maior. Para tal dispositivo, basta que haja o mero descumprimento injustificado dos deveres para que se dê causa ao pedido de destituição do poder familiar.


Assim, há o risco de se ingressar com esse pedido com a mera visualização de uma só oportunidade de ação ou omissão dos pais no que tange ao sustento, guarda e/ou educação. Se o pai deixou de alimentar adequadamente o filho em um só dia ou se não o matriculou na escola na época apropriada, já será motivo bastante para a medida judicial.


Paralelamente, o Projeto estipula para os pais um prazo máximo de sessenta dias, contados a partir do abrigamento, para que se restabeleçam de forma adequada a receber novamente o filho no seio familiar (artigo 64, §4º).


Na eventualidade de o dirigente da entidade de abrigo entender ser o caso de reintegração familiar (e caso os pais tenham demonstrado de forma significativa a capacidade para tanto), haverá um prazo de cento e vinte dias (que poderá ser renovado apenas por mais uma vez) para essa reinserção. Caso contrário, o dirigente fornecerá subsídios para a propositura de ação de destituição do poder familiar (§5º).


O legislador, no estabelecimento desses prazos, cria uma via de mão dupla: por um lado, obriga os pais ao reerguimento em tempo exíguo. Por outro, cria a possibilidade de que eles, uma vez recebendo o filho em sua companhia, venham a reincidir, criando a necessidade de recontagem factível desses prazos.


Não que a situação da criança ou adolescente em abrigo possa perdurar indefinidamente - muito pelo contrário, há o ensinamento de JOHN BOWLBY (Formação e rompimento de laços afetivos, São Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 123) no sentido de que é extremamente danoso para o jovem o rompimento das ligações familiares por meio do abrigamento. Mas há que se ter cautela na fixação de prazos para o restabelecimento dos pais.


II) O Promotor de Justiça


Pelo disposto no artigo 38 do Projeto, o representante do Ministério Público terá o prazo "máximo de trinta dias" para o ajuizamento da ação de destituição do poder familiar, contado a partir do momento em que chegar a seu conhecimento o fato que seria ensejador da medida.


Essa determinação igualmente consta do disposto no artigo 64, §6º, do Projeto, direcionando a atuação do Promotor de Justiça para o momento seguinte ao recebimento de relatório circunstanciado por parte do dirigente do abrigo em que a criança ou o adolescente se encontra.


Com relação a esses dispositivos, cumpre destacar sua manifesta inconstitucionalidade, primordialmente porque o Promotor de Justiça goza de independência funcional (conforme reza o contido no artigo 127, §1º, da Constituição da República).


Isto quer dizer que não se pode estabelecer um prazo para a atuação do Promotor de Justiça, correndo o risco de ser tachado de omisso, com comunicação à Corregedoria Geral do Ministério Público para providências administrativas e funcionais (artigo 64, §8º, do Projeto).


O motivo pela proibição de regras rígidas para a atuação do representante do Ministério Público se prende a sua convicção a respeito dos fatos. Poderá ocorrer que, caso não vislumbre a necessidade de propositura da ação, o Promotor de Justiça se volte para diligências tendentes a garantir a convivência familiar do jovem.


Nem por isso será classificado como omisso e muito menos será passível de qualquer punição ou recomendação funcional. Justamente pela independência funcional é que o Promotor de Justiça terá condições de, com ânimo sereno, analisar cada caso isoladamente e se decidir por esta ou aquela forma de agir, com vistas ou não ao rompimento de vínculos da criança/adolescente com sua família de sangue.


Além da questão envolvendo aspectos de convicção funcional, poderão ocorrer empecilhos para que o prazo máximo de trinta dias não seja observado (remoção/promoção do Promotor de Justiça, paralisação dos serviços do funcionalismo, falta de documentos necessários à instrução do pedido de destituição do poder familiar).


III) O Magistrado


Da mesma forma que o Promotor de Justiça, o Juiz de Direito também recebe um prazo máximo para que sua atuação se concretize. De conformidade com o disposto no artigo 38 do Projeto, o Magistrado deverá julgar a ação destitutória em tempo não superior a cento e vinte dias, contado da data de distribuição do feito, sob pena de responsabilização funcional.


Os Desembargadores igualmente têm um prazo a cumprir. Em caso de recurso, o relator deverá colocar o processo em mesa para julgamento em tempo não superior a sessenta dias, contados da conclusão (artigo 55, caput, do Projeto).


Havendo demora na distribuição e/ou julgamento do recurso, poderá haver sanções administrativas aos responsáveis (artigos 56 e 57, ambos do Projeto).


Contudo, não se pode esquecer jamais do fato de que o Juiz de Direito é integrante de um dos Poderes da União e como tal deve ser respeitado, principalmente no que tange a sua independência (artigo 2º da Magna Carta).


São, pois, considerados inconstitucionais igualmente os dispositivos do Projeto que estabelecem limites e sanções possíveis aos Magistrados - até mesmo porque determinada causa pode não ter necessariamente todos os elementos para a formação da convicção do Juiz de Direito, podendo haver diligências complementares e, por conseqüência, dilação de prazo, que não poderá ser motivo para punição ao Magistrado em sua função da juris dictio.


6. Os riscos do envolvimento do dirigente da entidade de abrigo no processo
O Projeto abre um panorama paradoxal ao deixar clara a possibilidade de, diante da recusa ou inércia do Promotor de Justiça quanto à propositura da ação de destituição do poder familiar, haver a iniciativa pelo dirigente da entidade de abrigo para tanto (artigo 64, §7º).


Falo em estabelecimento de um paradoxo na medida em que o Projeto, em seu artigo 28, caput, aborda a titularidade da ação de perda desse poder familiar, prevendo ser cabível por parte do Promotor de Justiça "ou de quem tenha legítimo interesse".


Poder-se-ia dizer que o dirigente de abrigo possuiria um possível interesse para o ajuizamento da ação na medida em que tem uma criança ou adolescente sob sua responsabilidade direta em termos de guarda (artigo 92, parágrafo único, da Lei nº 8069/90). Mas a questão é mais profunda.


Enquanto o artigo 28, caput, do Projeto mostra uma aparente legitimidade concorrente, o artigo 64, §7º, deixa claro que ela é subsidiária.


E mais - coloca-se o dirigente da entidade de abrigo como um fiscalizador da atividade do Promotor de Justiça, na medida em que prevê o encaminhamento do relatório da obra ao representante do Parquet para as providências cabíveis e estipula prazo para a iniciativa do Promotor de Justiça, sob pena de responsabilização administrativa e funcional.


Ou seja, se o dirigente da entidade notar que o Promotor de Justiça se fez inerte quanto à propositura da ação, estará legitimado a fazê-lo e a comunicar (ou pedir ao Magistrado tal comunicação) à Corregedoria Geral do Ministério Público a suposta omissão do Promotor de Justiça.


Estabeleceu-se com o Projeto uma situação de caos nas relações do dirigente com o Promotor de Justiça. Este é fiscal da entidade de abrigo por expressa previsão legal (artigo 201, inciso XI, do Estatuto da Criança e do Adolescente). Já o Projeto, em seu artigo 64, §§7º e 8º, transforma o dirigente em fiscal do Promotor de Justiça.


A prevalecer o texto da maneira como está posto para debate, o Projeto faz com que se corra o risco de haver inúmeras pendências a envolver o Promotor de Justiça e o dirigente da entidade de abrigo diretamente um contra o outro - isto ocorrerá de modo nocivo, na contramão da busca do melhor interesse da criança e do adolescente.


7. Questionamentos a respeito dos recursos nas ações versando sobre adoção e destituição do poder familiar
Um ponto igualmente intrigante a respeito do Projeto se encontra posto nos artigos 51 e 52, quando temos apelação recebida exclusivamente no efeito devolutivo quando se tratar de caso de deferimento de adoção ou de destituição do poder familiar.


Trata-se de questão que nos chama para o debate no seguinte aspecto: há um choque com o disposto no artigo 198, inciso VI, do Estatuto da Criança e do Adolescente, na medida em que faz desaparecer o efeito suspensivo referente à adoção deferida a estrangeiro residente e domiciliado no Exterior.


Da mesma forma haverá colisão com o disposto no artigo 47, §6º, da Lei nº 8069/90, já que a adoção produzirá seus efeitos desde logo, e não mais a partir do trânsito em julgado da sentença, abrindo-se caminho para o estrangeiro residente e domiciliado no Exterior levar o adotado consigo, mesmo pendendo apelação contra a sentença concessiva de adoção, revogado que estará igualmente o artigo 51, §4º, do Estatuto da Criança e do Adolescente.


Além desse fator, há outro que nos causa inquietação: na hipótese de destituição do poder familiar, não haverá mais a cautela do Juiz de Direito no recebimento da apelação no efeito suspensivo, com a afirmação de risco de dano irreparável em caso de reversão da situação perante a Superior Instância, restabelecendo-se o poder familiar em sua inteireza.


Na prática, se houver sentença a destituir os genitores do poder familiar, gerará efeito imediato de colocar a criança ou adolescente à disposição para colocação em lar alternativo, independentemente da interposição ou não de recurso de apelação, já que, havendo irresignação recursal, somente será recebida pelo Magistrado no efeito meramente devolutivo (artigo 52 do Projeto).


Ao desfazer a possibilidade de recebimento da apelação em seu efeito suspensivo, o Projeto concretiza o risco de desestabilização da situação do abrigado, na medida em que, sendo gerados efeitos desde logo com a sentença de destituição do poder familiar, poderá ser o jovem inserido em lar substituto, mesmo que a sentença seja reformada mais à frente pelo Tribunal.


Outro ponto muito discutível a respeito dos recursos sob a ótica do Projeto se prende ao processamento "com prioridade absoluta" (artigo 54).


Acostumou-se o legislador a banalizar o termo. Hoje em dia vários feitos tramitam em regime de prioridade. É assim com os habeas corpus, os mandados de segurança, os processos da Justiça Eleitoral e os feitos a envolver idosos.


Contudo, questiono: o que será feito dos processos a envolver adolescentes infratores que apelam da sentença a aplicar medida sócio-educativa de restrição de liberdade? Isso sem falar nas próprias impetrações de habeas corpus, que gozam de prioridade por sua essência.


O Projeto inverte valores na medida em que a liberdade dos jovens infratores passa a ser tratada em plano inferior, deixando-se como prioritária a colocação de crianças e adolescentes em lar substituto.


Quando a palavra "prioridade" passa a ser utilizada de forma desmesurada, ocorrem situações como aquela em que a liberdade do jovem infrator deixa de ocupar lugar de destaque em se tratando de trâmite recursal - o que não se admite de forma alguma.


8. Considerações finais
Como abordado no início do presente trabalho, bastaria ao operador do Direito da Infância e da Juventude a pura e simples aplicação do que já está posto no Estatuto da Criança e do Adolescente para o alcance do que a doutrina estrangeira convencionou chamar de best interest of the child.


Com a apresentação do Projeto de Lei nº 1756/03, o legislador, embora imbuído de boas intenções para tentar solucionar problemas envolvendo crianças e adolescentes em situação de risco e passíveis de colocação em lar alternativo, peca ao desejar acelerar procedimentos (equivocadamente, convém dizer) e ao fazer com que haja colisão frontal na atuação dos participantes do processo de análise da situação dos jovens.


O ideal será a tomada das seguintes atitudes para evitar grande parte dos conflitos apontados no presente estudo:


a) racionalização na observância de atitudes dos protagonistas na área do Direito da Infância e da Juventude: ao invés de serem impostos prazos rígidos para a tomada de posições, faz-se necessária a flexibilização. Não que se busque procrastinar a situação dos jovens em situação de risco sine die, mas o estabelecimento de prazos peremptórios torna a relação entre pais, Juiz de Direito, Promotor de Justiça e responsáveis por abrigos como algo fatídico, impossível de revisão a médio/longo prazo;


b) adequação de procedimentos em trâmite perante a Justiça da Infância e da Juventude: uma liberdade ampla e irrestrita quanto a critérios preestabelecidos de escolha de adotantes para adotandos necessita ser reconsiderada a fim de que haja maior democratização no processo de inserção dos jovens em lares alternativos. Além disso, deve haver uma maior coerência no trâmite de processos nos Tribunais, a fim de que não sejam desrespeitados, por exemplo, os direitos dos jovens infratores internados que estão a aguardar por definição em seus casos;


c) maior respeito ao direito à convivência familiar: troca do enfoque do que o legislador trata como "direito à adoção", valorizando-se as tentativas de reinserção da criança ou adolescente em sua família de origem, buscando-se para tanto recursos oficiais e/ou comunitários, sem que a inserção do jovem em abrigo seja vista quase que automaticamente como um portão de passagem para a colocação em lar alternativo.


Assim sendo, torna-se imperiosa uma maior discussão do Projeto nº 1756/03 por todos os setores da sociedade civil envolvidos na questão da criança e do adolescente, propiciando-se a mais completa harmonização de procedimentos, sempre a buscar valorizar o direito do jovem à convivência familiar, somente se procedendo de forma alternativa quando esgotadas todas as possibilidades quanto ao lar de origem.



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