Comentários sobre o Projeto de Lei Nacional de Adoção – PL n.º 1.756/2003
Artigo entregue a deputada federal Luiza Erundina no dia 05/03/2004
O Projeto de Lei Nacional de Adoção teve origem por iniciativa de Grupos de Apoio à Adoção, organizados em torno da ANGAAD, em âmbito nacional. A Associação articulou uma Frente Parlamentar da Adoção, composta de deputados e senadores que têm alguma vinculação pessoal com a medida.
O Deputado João Matos (PMDB/PR), presidente da frente e autor do projeto de Lei que está tramitando no Congresso Nacional em regime de urgência urgentíssima contou com a assessoria de organizações não governamentais, grupos de apoio à adoção, da Comissão de Apoio à Convivência Familiar, juízes das Varas da Infância e Juventude, especialistas na área. Tal projeto lida com a adoção como uma medida saneadora do abandono da criança e do jovem brasileiros, ignorando outras formas de colocação familiar.
O Projeto de Lei representa a infância como um segmento indefeso e imaturo, que depende exclusivamente de uma família, para se desenvolver. Elege a adoção como um direito da criança e passa a tratá-la como a medida a ser oferecida como oportunidade de desabrigamento, que deve ser realizada com o máximo de facilidades, mesmo que retirando direitos da própria criança de permanecer com sua família de origem, se esta não oferecer condições de recebê-la de volta em sessenta dias.
O rigor do tempo, tenta abreviar os longos períodos de institucionalização de crianças e jovens em abrigos, porém, incorre no risco de penalizar as famílias que, sem condições materiais de sobrevivência, se tornam também alijadas de seus filhos, se não puderem assumi-los no exato momento da avaliação forense.
Nesse caso, o Estado passa a definir a filiação, sem contudo, arcar com o ônus da garantia dos direitos fundamentais às famílias e aos seus filhos. Uma visão periférica da questão, permite um perverso processo de culpabilização das famílias pelo abrigamento dos filhos, ignorando o contexto social, econômico e político em que as próprias famílias se inserem. Ignora-se, também, resultados de investigações científicas<!--[if !supportFootnotes]-->[1]<!--[endif]--> quanto ao fenômeno social dos abrigos no Brasil, em que as causas do abrigamento são predominantemente apontadas como sendo relacionadas à pobreza.
A segurança e a alimentação oferecidas pelos abrigos às crianças, passam a justificar a permanência, descaracterizando a medida tal como é preconizada pelo ECA.
“Por trás de uma criança de abrigo há uma família que foi abandonada pelo poder público, que não oferece, por exemplo, creches ou escolas em período integral que permitam aos pais sair para trabalhar tranqüilos em relação à educação e aos cuidados dispensados aos filhos”. (Enid Rocha – coordenadora do estudo do Ipea).
Assim, a análise<!--[if !supportFootnotes]-->[2]<!--[endif]--> de processos judiciais de abrigamento e prontuários de crianças e jovens indicam que os mesmos são abrigados, de forma predominante, pela ausência de recursos materiais e psicológicos dos pais e/ou responsáveis. Isso se expressa pela chamada negligência, vitimização física, abandono e o pedido expresso de acolhimento provisório.
O longo tempo de permanência de algumas crianças que recebem visitas regulares indicam a vinculação com a família de origem, sem, entretanto, muitas vezes, ocorrer algum programa de aproximação e/ou reintegração familiar, por parte da organização acolhedora.
A faixa etária alcançada pelas crianças e jovens abrigados, é outro indicador de que o abrigo se torna, muitas vezes, uma casa de permanência, sem que a situação legal tenha sido definida, mesmo quando não existe mais contato com familiares.
A colocação familiar nem sempre é colocada como medida alternativa, e a criança cresce institucionalizada, sem entretanto, ser qualificada pedagógica e psicologicamente, para assumir postos no trabalho competitivo do mercado ou constituir sua própria família.
Diante desse quadro, o Projeto de Lei Nacional de Adoção se apresenta como uma possível alternativa. Pretende colocar a adoção como uma medida capaz de alterar essa realidade, na medida em que dispõe de recursos facilitadores do processo legal de adoção
Pretende dar a todas as crianças uma família, mesmo que para isso seja necessário retirar a sua, caso essa não esteja arcando com suas obrigações parentais. Parte do princípio de que se a criança está abrigada, teve seus vínculos familiares rompidos, esgarçados e não se deve perder tempo buscando soluções junto a esse grupo familiar. Assim fixa um tempo fictício para tentativa de aproximação, fim do qual, a criança deve ser colocada obrigatoriamente em família substituta pela medida protetiva da adoção.
Entre as alternativas que apresenta para cumprir seus princípios, algumas são perniciosas e invertem o sentido da medida, tornando-a uma salvaguarda para a família que deseja adotar mais do que para a criança que está abrigada. Vejamos os pressupostos que essas alternativas parecem nos apresentar:
1) A medida da adoção como um direito da criança
Incorre numa séria distorção, pois, a criança tem direito à convivência familiar, conforme lhe é garantido pela Constituição Federal e pelo ECA.
Convivência familiar, significa o direito de viver em família, seja ela a de origem, nuclear ou extensa, seja a convivência em família de apoio ou substituta pela guarda, tutela ou adoção. Reduzir as medidas de proteção à da adoção, pode significar uma falta de incentivo às políticas públicas de apoio às famílias para manutenção de seus filhos consigo.
Nesse momento social e político, em que o Estado vem sendo minimizado, com fortalecimento do terceiro setor, e forte incentivo do neo-liberalismo ao chamado estado solidário, com políticas de baixo custo, e alto impacto midiático, reduzir o número de crianças abrigadas e aumentar a taxa de crianças adotadas, pode parecer uma campanha bem sucedida, com alto apelo caritativo. O chamado às consciências intranqüilas encontraria terreno fértil nos meios empresariais e na sociedade civil, e é nesse tom que o projeto de Lei se apresenta – como uma salvaguarda das crianças esquecidas e uma promessa de sucesso em esvaziar os abrigos em curto espaço de tempo. Parece que a imagem de sucesso e rapidez se associam, se contrapondo ao que seria um trabalho de política social pública, voltado para a prevenção do abandono das crianças em abrigos e o incentivo a políticas de educação integral que permitam a permanência de crianças e jovens em escolas promotoras de saúde e bem estar social.
O Projeto de Lei Nacional de Adoção ignora essas questões e pressupõe que a retirada da criança da família de origem e dos abrigos e sua imediata colocação em famílias adotivas pode ser a solução para os problemas dessa infância esquecida. Dessa maneira, o PL esvazia as propostas do ECA
Caberia se perguntar:
· Como as famílias de origem serão trabalhadas para deixarem seus filhos de forma definitiva? (estudos comprovam o uso dos abrigos como instituições de apoio em substituição às creches e escolas de períodos integrais que corroborem a jornada de trabalho das mães das famílias monoparentais, cujos desenhos e funcionamentos são distintos e variados, mas não necessariamente disfuncionais.
· Como as crianças serão preparadas para as novas famílias adotivas? – A escolha da criança e do adolescente pela colocação é um direito garantido pela Constituição e pelo ECA, bem como o preparo para as mudanças conseqüentes dessa medida, dependendo da idade do sujeito.
· Há diferentes crises nas famílias pobres que motivam a colocação de seus filhos em abrigos temporários por meio do Judiciário e Conselhos Tutelares – cabe perguntar quais as razões de permanência das crianças em situação de abrigamento quando têm familiares?
2) As agências credenciadas e os dirigentes de abrigos podem fazer a adoção acontecer – o Ministério Público e os profissionais do Judiciário só se manifestam se não prejudicarem o processo.
O Projeto de Lei estabelece que “as entidades que desenvolvem programas de abrigo deverão apresentar à Autoridade Judiciária e ao Ministério Público, no prazo máximo de sessenta dias após o abrigamento, estudo indicativo do encaminhamento a ser adotado à criança ou adolescente, alternativamente para reintegração à família de origem ou colocação em família substituta, especificando as ações efetivadas pela rede de atendimento.”
O período para reintegração familiar é fixado em no máximo 120 dias, para a entidade apresentar o resultado da tentativa de reintegração familiar por meio de um estudo social. A partir daí o Ministério Público tem 30 dias para aplicar a providência de destituição do poder familiar e a colocação em família substituta, sob risco de pena de comunicação à Corregedoria Geral para providências administrativas e funcionais. (artigo 64 parág.7.º). O PL faculta ao dirigente de Abrigo poderes de ajuizar a ação para decretação da perda do Poder Familiar ou de comunicar ao Poder Judiciário, para nomeação de curador especial com essa finalidade, caso o MP não proponha a ação de destituição de poder familiar em 30 dias após a comunicação mencionada.
Cabe ao abrigo e sua equipe, também acompanhar o processo de aproximação da criança com os pretendentes à adoção.
O projeto de Lei, converte assim, o dirigente do abrigo em senhor de atuação do Ministério Público, atribuindo ao promotor de Justiça o dever de agir nos termos do relatório elaborado pela entidade.
O projeto de lei coloca também, na entidade, uma concentração de poderes sobre a criança no mínimo suspeita, se considerarmos a facilitação de procedimentos para a adoção por estrangeiros arrolados nos artigos 44 a 64.
Além do que, a preparação de casais para a adoção, o acompanhamento pré e pós adoção passam a ser realizados por organismos credenciados em substituição aos profissionais especializados do Poder Público ( Judiciário).
As avaliações das crianças e jovens no Abrigo, cujos relatórios decidem se serão mantidas em suas famílias originais ou colocadas em famílias substitutas são realizadas pelo profissionais do Abrigo – atualmente a maioria das entidades não possuem profissionais e sim cuidadores. As avaliações de caráter técnico são realizadas por assistentes sociais e psicólogos judiciários, especialistas que procuram equacionar a garantia dos direitos das crianças e as políticas públicas, no exercício das funções de assessoria jurisdicional.
O PL retira essas atribuições e as delega aos cuidadores, cujos relatórios podem ser peças constitutivas dos autos enquanto elementos informativos das crianças em seu cotidiano na instituição, mas, que passa agora a ter um caráter pericial sem contudo ser garantida qualquer especificidade técnica e com clara suspeição advinda das relações estabelecidas com a criança no abrigo. A relação cuidador-criança é de outra natureza, essencial para a formação da convicção do julgador sobre a decisão a ser tomada à respeito de suas relações com a família de origem e/ou substituta, porém, não supre a conveniência de avaliações independentes, de profissionais que possam aquilatar a situação emocional e social de todos os implicados nessa decisão, inclusive e principalmente a própria criança.
As relações entre as instituições e seus agentes em rede é uma das necessidades a serem trabalhadas enquanto uma das disposições do ECA, ainda não colocada em prática pelos operadores do Direito da Infância.
O risco de PL é centralizar poderes em um dos agentes da rede, que inversamente aos objetivos propostos, pode gerar uma distorção no Estado de Direito e ao invés de termos um Ministério Público como representante dos Direitos da Criança e do Adolescente, termos a predominância de dirigentes de Abrigos, como guardiões de adoções que poderão ser feitas a qualquer preço e para qualquer país..., cujos relatórios podem correr o risco de serem sempre muito favoráveis!!!! Independentemente das qualidades da relação adotando-adotante, já que o desejo da adolescente não é considerado de fato nessa decisão.(vide artigo 22 do PL 1756).
A cultura do abrigamento é uma herança cultural arraigada no país desde a colonização, com a prática da Roda dos Expostos, quando crianças expostas e enjeitadas eram deixadas em Santas Casas para serem cuidadas por amas-de-leite alugadas pelo Estado, como forma de garantir suas vidas. Um estudo mais detalhado (Venâncio, R.P., 1999), relata que essa prática – o recurso à roda – foi incorporado às diversas estratégias de sobrevivência das camadas populares das antigas cidades brasileiras. A falência das instituições de assistência infantil no Brasil contemporâneo, segundo esse autor, parece estar ligada à secular incapacidade da cultura oficial em compreender as formas de organização das famílias pobres.
“....o legado cultural que animou o funcionamento das antigas instituições de socorro à infância desvalida não desapareceu com elas. Durante o século XX, foi mantida a perversa tradição de estigmatizar os pobres e de excluir qualquer possibilidade de implantação de uma política assistencial voltada para a família, seja ela nuclear ou monoparental. Da mesma forma que no período colonial, as famílias pobres de nossos dias só encontram uma saída para socorrer os filhos carentes: entregá-los a uma instituição mantida pelo Estado ou pela filantropia privada, abandonando-os assim à própria sorte.” (Venâncio,R.P.:1999,p.170)
Esse Projeto de Lei, embora imbuído dos melhores interesses, repete essa contradição, pois facilita indiretamente, que as políticas públicas deixem de investir na manutenção das crianças com suas famílias de origem e nas formas de atendimento aos direitos fundamentais da criança e do adolescente, apregoadas pelo ECA, e os princípios da Doutrina da Proteção Integral.
Notas:
1- Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes (IPEA/CONANDA)
2- Estudo exploratório realizado pela AASPTJ/SP em processos de crianças e jovens abrigados na Capital/ SP, e a pesquisa “Por uma Política de Abrigos na Cidade de São Paulo”, realizada pela Fundação Orsa, SAS, AASPTJ/SP e NCA-PUC/SP