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Discutindo Particularidades da Adoção: A Questão da Etnia

Autor: 
Ana Maria da Silveira,
Autor: 
assistente social Judiciária lotada no Serviço Psicossocial Vocacional - São Paulo/Capital. Atuou nas Varas da Infância e da Família durante 15 anos

A questão da desigualdade entre brancos e não brancos e o preconceito racial são fatos visíveis nos diversos setores da sociedade. Embora convivendo no Estado Brasileiro com a doce ilusão da democracia racial - somos todos miscigenados, cada brasileiro, de algum modo, "reconhece" suas raízes na senzala, "não existe" preconceito de cor - permanece a ideologia de mais de cem anos atrás. Várias formas de racismo pautadas em traços fenotípicos como a cor da pele, ainda se evidenciam como empecilhos de negros e seus descendentes no acesso à riqueza, aos bens sociais, incluindo a Justiça.


Adorno (1996) em pesquisa sobre violência urbana, justiça criminal e a organização social do crime já apontava alguns indícios dessa maneira diferenciada de tratar o negro no âmbito da Justiça (penal). Nos procedimentos de adoção crianças e jovens também sofrem discriminações que se fundamentam principalmente em caracteres raciais. Tais manifestações aparecem, sobretudo, no discurso de cidadãos brasileiros que se candidatam a pais adotivos, independentemente de classe social.


O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê em seu art. 5º que "nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, (grifo da autora) exploração, violência, crueldade e opressão..." Mas resta muita coisa a ser feita para que direitos mediados por categorias universalizantes não permaneçam apenas na letra da Lei.


Essa temática e as reflexões a seguir, foram abordadas na minha dissertação de Mestrado em Serviço Social na PUC/SP, defendida no dia 13/05/2002, mediante orientação da Prof. Dra. Myrian Veras Baptista. Intitulado "Particularidades da Adoção: a questão da etnia", o referido estudo baseou-se nos registros do Cadastro de Crianças disponíveis para adoção, do Cadastro de Pretendentes à adoção, dos autos que tratam dos procedimentos de adoção e nos depoimentos de profissionais que atuam nos Juizados da Infância e da Juventude. Teve como objetivos, apontar os aspectos reguladores da colocação de crianças e jovens em lares adotivos, os indicadores que interferem no encaminhamento dos originários da raça negra e as estratégias engendradas pelos agentes institucionais na prática adotiva.


A partir de dados encontrados nestas fontes foi possível confirmar algumas hipóteses levantadas acerca da difícil inserção de crianças e jovens de etnia negra em famílias adotivas brasileiras. Mesmo incluídos pela Lei, suas chances de encaminhamento para adoção são reduzidas, permanecem em instituições abrigo, ou quando muito, são adotados por cidadãos de outros países. No entanto, há que considerar que pretendentes estrangeiros, embora demonstrem uma cultura diversa, em termos de adoção, também manifestam suas preferências por recém-nascidos, de etnia branca e sem problemas de saúde.


A particularidade racial como um dos elementos determinantes no processo de adoção não pode ser compreendida de forma fragmentada, ou seja sem atrelá-la a outras categorias que ampliam este quadro de análise: pobreza, preconceito, racismo, intolerância às diferenças, etc. Embora sejam categorias que envolvem conceitos distintos, na realidade elas se complementam, servem para incluir ou excluir certos estratos da sociedade das riquezas materiais e sociais.


Nem sempre a adoção contempla a todos que dela necessitam, não obstante seja indicada como uma das medidas que melhor atende aos interesses de infantes e jovens declarados em situação de abandono pela autoridade judiciária. Particularidades como saúde, idade e cor da pele, apresentam-se como dificuldades para que crianças e jovens não usufruam do direito à convivência familiar adotiva. Quanto às particularidades raciais (foco principal deste estudo) estas podem possibilitar ou dificultar a inserção desses sujeitos no âmbito da família adotiva, dependendo do conceito de identificação que lhes são atribuídos - pardo-claro, pardo-escuro, preto, quase preto branco ou quase branco. Como diz Milton Santos, no Brasil a marca predominante é a ambivalência com que a sociedade branca reage, quando o tema é a existência, no país de um problema negro.


A inserção de crianças e jovens em família adotiva baseia-se no ideal de beleza estabelecido pela classe dominante e que se mantém no imaginário social. Gostaríamos que a criança fosse branca, cabelos castanhos, olhos verdes ou castanhos para ser parecido com a nossa família; gostaríamos que fosse apenas de cor branca, loira e olhos claros... Só aceitam criança parda-clara, sem traços negroides e com situação juridicamente definida; desejamos uma criança branca (registros encontrados nos documentos pesquisados). Nestas manifestações o quesito cor aparece como elemento "visível do campo ideológico, constituído de estereótipos, de preconceitos. Nas entrelinhas resta evidente a imagem do negro inferiorizada em relação ao branco." Ë o chamado preconceito de marca apontado por Nogueira , ou seja aquele que se baseia na aparência. Se a pessoa estiver mais próxima dos caracteres raciais (do negro) mais chances terá de ser preterida.


A forma negativa e estereotipada de encarar a situação de crianças e jovens disponíveis para adoção, muitas vezes, aparece no discurso e nas ações de pessoas que, de alguma maneira, estão em contato com este universo. A busca pelos assemelhados e a dificuldade de adotarem crianças que não se encaixam nos padrões da estética dominante são aspectos que têm sido incorporados no interior das práticas judiciárias, revelando a intolerância às diferenças raciais e a negação à diversidade étnico-cultural.


Na Convenção Internacional que discutiu sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial, ficou estabelecido que a discriminação racial compreende (...) qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tem por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano ( em igualdade de condição) de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio da vida pública.


Mas não é fácil por em xeque o problema racial aparente nos diversos contextos da sociedade, mesmo diante de fatos que corroboram ações discriminatórias e o preconceito baseado na aparência. Afinal vive-se em um país onde o mito da harmonização entre as raças esconde o seu verdadeiro sentido. Muitos cidadãos ainda estão presos às amarras de uma ideologia conservadora, valorizando aspectos meramente subjetivos, como a cor da pele, como se esta fosse o único elemento de visibilidade em um grupo racial. Nega-se as raízes socioculturais que são a base de sustentação na história das relações vividas em sociedade.


É verdade que nos tempos atuais tem havido uma certa preocupação em combater todas as formas de discriminação e racismo. O multiculturalismo tem estado na pauta de muitos debates, mas ações discriminatórias ainda fazem parte da vida de uma grande parcela de cidadãos considerados de segunda classe.


O estudo que realizei demonstrou que as particularidades presentes nos procedimentos de adoção têm contribuído para a perpetuação da discriminação racial e da impossibilidade de lidar com a heterogeneidade e diferenças presentes na vida social. Crianças (negras) mesmo em condições peculiares de desenvolvimento continuam sendo preteridas. As famílias que recorrem à adoção, ao idealizarem um tipo de criança, sequer cogitam a idéia de poderem exercitar a alteridade e o convívio com as diferenças. Essa idealização ou modelo de filho estão mais presentes na filiação adotiva, talvez pela opção de escolha, de seleção, o que nem sempre ocorre, quando se pensa na filiação pelos laços da consangüinidade.


Os indicadores da não inserção de crianças pretas ou quase pretas em famílias adotivas brasileiras, apresentam-se como mais um indício de que o negro continua sofrendo os efeitos de uma sociedade tremendamente preconceituosa em todos os âmbitos das relações sociais. Com efeito, ser negro no Brasil significa ter oportunidades reduzidas, a não ser que este cidadão esteja mais próximo da linha divisória entre brancos e negros. A tese do branqueamento também está presente na prática adotiva, pois ser pardo-claro neste contexto, quer dizer ser quase branco, e consequentemente ter mais possibilidades de adoção. No entanto ser preto, negroide ou com traços negroides predominantes, significa ser excluído na ordem da "preferência nacional," até por pessoas do próprio grupo racial. Constatei que, apesar do aumento do número de negros que se candidatam a pais adotivos, nem sempre, eles se interessaram por crianças pretas. Tal constatação vem reforçar o pensamento de que o negro tende a avaliar negativamente sua descendência, negando seus próprios valores étnico-culturais.


Considero que as necessidades da criança ou do adolescente deveriam se sobrepor a qualquer interesse dos adotantes. Todavia, parece que há uma certa tendência em atender muito mais aos interesses daqueles que adotam. Se uma grande parcela do contingente declarado em situação de abandono pela autoridade judiciária não fosse discriminada por suas particularidades - de gênero, de classe, de gerações e/ ou de etnia - muitos poderiam encontrar no meio familiar adotivo e em outras formas que possam dar conta do abandono, a possibilidade de serem respeitados em sua dignidade humana.


Trabalhar com sujeitos que trazem consigo particularidades como pobreza, saúde, etnia, e outras, exigem dos agentes que atuam com estas questões, um posicionamento crítico e a busca de respostas coerentes, bem como o esforço para não se incorrer no erro da superficialidade e de uma visão parcializada da realidade social. Neste sentido, torna-se importante o engajamento em projetos que estejam comprometidos com a defesa e a garantia efetiva de direitos que conduzem para consolidação da cidadania.


Não se pode negar que algumas ações têm sido positivas na cultura da adoção, mas a persistência de certos critérios tendem a selecionar e excluir os diferentes. Restam ainda muitos entraves a serem superados na sociedade brasileira para que medidas protetivas, como a adoção, possam ser estendidas de maneira igualitária à todas as crianças e aos adolescentes, que se encontram em estado de vulnerabilidade e carecem de proteção integral. Alguns empreendimentos por parte da sociedade surgem como possibilidades que tendem a facilitar o acesso da criança de origem negra a lares adotivos. Entretanto é necessário lidar com a questão racial na prática das adoções, com maior profundidade. As aproximações e a interlocução com os movimentos negros, a preparação dos pretendentes à adoção independentemente de suas origens raciais, se apresentam como alternativas que poderiam contribuir para o combate à discriminação no campo das adoções.


Referências Bibliográficas utilizadas neste texto:


D'Adesky, Jacques. Racismo e Anti-Racismo no Brasil. Rio de Janeiro:Pallas, 2001.

Nogueira, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem in Tanto preto quanto branco. São Paulo: T. A . Queiroz,1985.


Saboia, Gilberto e outros. Comitê Nacional para a Preparação da Participação Brasileira na III Conferencia Mundial das Nações Unidas contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e


Intolerância Correlata.(Durban, 31 de agosto de 2001) www.mj.gov.br/sedh/relatório%20comitê%20nac%preparação%20p a...-10/10/2001.


Sant'anna, Wânia e Paixão, Marcelo.Desenvolvimento Humano e População Afrodescendente no Brasil: uma questão de Raça. Propost, nº 73. Rio de Janeiro: Fase. www.fase.org.br/nova abolicionista.


Santos, Milton. O País Distorcido:o Brasil, a globalização e a cidadania.São Paulo:PubliFolha, 2002.



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