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O Setting na Instituição Judiciária

Autor: 
Claudia Anaf,
Autor: 
Psicóloga Judiciária, Vara da Infância e da Juventude do Foro da Lapa, São Paulo - Capital

Pretendo neste trabalho abordar a questão do setting dentro da Instituição Judicária, a partir da minha prática enquanto psicóloga, trabalhando em Vara de Infância e Juventude.


Esclareço que os casos chegam à psicologia através de um processo, onde há uma medida judicial a ser tomada. Trata-se de guarda, adoção, maus-tratos, abrigamento/desabrigamento, disputa, destituição do pátrio-poder, vitimização, queixa- conduta, suprimento de idade e suprimento de consentimento para casamento.


As dificuldades começam pelas instalações inadequadas. No ambiente de trabalho não há nenhuma privacidade para o atendimento. O setor de psicologia que agrega vários profissionais da área, não dispõe nem ao menos de uma mesa fixa para cada psicólogo.


Os casos são atendidos em boxes sem portas, nos quais os psicólogos se revezam, havendo vazamento de som e possibilidade de escutar o que está sendo dito em outro box.


O profissional frequentemente é interrompido em seu atendimento pelos mais diferentes motivos, inclusive por ser chamado pelo juiz.


Se pensarmos nas condições clássicas de atendimento, aprendidas ainda na faculdade , só as instalações em si, já inviabilizariam o trabalho.


A própria inserção do psicólogo no judicário, dada através do artigo 151 do Estatuto da Criança e do Adolescente, lhe traz um sério questionamento.


O artigo reza que:


"Compete à equipe interprofissional, dentre outras atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito, mediante laudos, ou verbalmente, na audiência e bem assim desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção e outros, tudo sob a imediata subordinação à autoridade judicária, assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico."


Destarte, o psicólogo está colocado no lugar de assessor do juiz, o que implica em perder a proteção oferecida pelo setting clássico, tendo de fornecer informações sobre os atendidos, o que se choca frontalmente com tudo aquilo que aprendeu em sua formação a respeito de neutralidade.


Além disto o cliente atendido sabe que o que disser poderá ser informado ao juiz, ou seja, sabe que não há sigilo.


Ora, uma das primeiras lições que o psicólogo tem em sua formação é sobre o significado e a importância do sigilo.


Para entravar ainda mais a ação psicológica, o cliente não vem ao fórum na expectativa de tratar seus problemas com um psicólogo. Ele vem, sim, na expectativa de que o juiz resolva para ele, ou melhor, decida por ele, aquilo que não se sente em condições. O cliente busca uma autoridade paterna que se responsabilize pelas suas dificuldades não resolvidas.


Assim o cliente não vem com demanda de atendimento psicológico, e sim de resoluções rápidas da parte do juiz. Sua expectativa é frustrada, no momento em que ao invés da solução almejada, é avisado de que os autos foram enviados ao serviço de psicologia, e que lá deverá ser entrevistado.


O psicólogo depara-se com a difícil tarefa de sensibilizar o indivíduo para um atendimento, para a posteriori poder intervir no caso.


Há que se considerar que quando a clientela busca o Fórum, é por que esgotou todos os recursos que tinha para lidar com a situação conflitiva. Fazendo uma comparação grosso modo, é como um doente necessitando de intervenção cirúrgica emergencial. E é com esse cliente que o psicólogo tem de atuar.


Em resumo o trabalho do psicólogo é obstaculizado, e a todo momento, das mais variadas formas.


O psicólogo na Vara de Infância tem que, primeiramente, criar demanda de trabalho psicológico no cliente, para depois intervir completamente fora do setting (no sentido tradicionalmente conhecido), sem sigilo, sem sala...


Será inviável este trabalho?


Apesar da angústia que causa, estar nesta difícil posição, a resposta é não. Trata-se de um trabalho de capital importância para os casos e para o judiciário, e por isto mesmo há que ser realizado.


Há que se pensar o setting, e poder atender tanto à demanda da instituição, quanto a latente do cliente, que através de uma queixa ao juiz inconscientemente pede ajuda para resolver seus conflitos.O fato de a Instituição do Direito contratar o psicólogo revela que a ciência do Direito por si só não consegue dar conta de algumas questões, e em função disto recorre à Psicologia.


Há uma contrapartida, que é adaptar-se à demanda da instituição. Um psicanalista ortodoxo poderia ter uma excelente compreensão dos casos atendidos, mas não poderia contribuir para a melhoria das relações numa família, sem minimamente dar uma devolutiva ao juiz, ou articular com este uma saída para o caso.


Sendo assim, o profissional deve partir do pressuposto de ser uma pessoa real, e jamais neutra, tendo claro que somente desta forma, será possível a sua ação.


O psicólogo quando da primeira entrevista tem que dizer aos clientes, que leu o processo, sabendo todo o histórico do caso, que sua função é de entendimento e de tentativa de ajuda da situação (tendo sempre a criança como prioridade) que emitirá um relatório para o juiz, no qual ele poderá basear sua decisão.


Só a partir deste contrato é que existe possibilidade de ação.


Reconhecer esta limitação implica que a Vara não pode ser o lugar da psicoterapia, mas sim que encaminha para esta.


O psicólogo parte de uma leitura clínica, para já numa primeira entrevista perceber qual a conflitiva da família que está a sua frente, e a partir daí devolver à mesma sua problemática, no intento de que se torne ciente de suas questões latentes e não mais somente as manifestas.


A intervenção psicológica se caracteriza em muitos momentos por um tipo de deciframento, de descentralização do lugar de vítima ou imputado, de mover e por entre parênteses para serem revisados os lugares fixos colocados pela família: de enfermo, de são, de transgressor, etc...Inclui-se aí também a desvelação de pactos secretos e vitimização, marcando contradições, assinalando orientações e prescrições.


Após a feitura do diagnóstico situacional, é feito um período de acompanhamento do caso, que objetiva verificar se os clientes procuraram psicoterapia, se puderam refletir melhor sobre seus problemas, se passaram a funcionar de forma mais sadia, etc...


Neste sentido, o acompanhamento psicológico pauta-se no estar "por perto" do cliente durante um certo período, um pouco como observador, um pouco como companheiro de viagem; um pouco como referência, um pouco como amigo qualificado, às vêzes até mãe ou pai, porém, raramente como terapeuta.


Para ilustrar a questão do setting, mencionarei alguns casos por mim atendidos:


1-M. a genitora, veio ao Fórum, pois o marido a espancava, sendo alcoólatra e tendo tido atos libidinosos com uma das filhas.


Percebi tratar-se de uma mãe afetiva e adequada com seus filhos(4).Temia muito ao marido, não tendo por isto coragem para separar-se. Após várias entrevistas, notou-se que o genitor não possuía a menor disponibilidade interna de mudança, mesmo frente à ameaça de perda do pátrio- poder, que lhe foi feita pelo juiz. Contrariamente, encontrava na situação mais justificativas para maltratar a família. A genitora passou a ser atendida na psicologia, a fim de que tomasse coragem de se separar. Esta finalmente assumiu a separação, após o que continuava solicitando ser atendida. O seu pedido denotava necessidade de ser reassegurada em sua atitude de separação, bem como uma busca de apoio por temor de se ver sozinha na vida. A genitora passou então a ser orientada no sentido de perceber que, se tinha forças para se separar do marido, que era o mais difícil, tinha forças também para continuar a vida; era necessário que reconhecesse a si mesma. Tendo havido tal compreensão, o caso foi encerrado na psicologia.


2-R. ficou órfão aos sete anos. Seu irmão foi adotado. Nenhum dos parentes de R. se dispunha a assumí-lo. Foi abrigado numa instituição para abandonados. Quando chegou à adolescência, o jovem mostrou-se muito revoltado e começou a delinquir.


O jovem foi então encaminhado para a psicologia. Na época contava com 14 anos. Foi orientado no sentido de perceber as consequências nefastas que a revolta vinha trazendo para sua vida. Os atendimentos eram feitos com periodicidade mensal. O jovem evitava vincular-se por medo de sofrer novas rejeições. A cada vinda de R., tal lhe era apontado. R. foi encaminhado inúmeras vêzes para terapia, mas se colocava muito resistente.


Após um ano de comparecimento à psicologia, R. começou a falar de si. Aos poucos foi se ligando à psicóloga e mostrando interesse nos retornos. O que a psicologia fez foi mostrar a disponibilidade e interesse em estar com o adolescente. As vêzes, as conversas eram sobre assuntos banais, pois se considerou importante que R. se sentisse a vontade.


Este começou a se sentir apoiado. Mostrou que levava consigo na carteira, o papelete com os horários de retorno marcados. Começou a ter amigos e até namorada. Voltou a estudar.


Continuei marcando os retornos, objetivando que R. pudesse sentir a existência de vínculos estáveis, apesar de ter perdido todos os vínculos familiares.


Ao que parece, tal tática surtiu efeito. R. deixara de delinquir há muito tempo. O jovem não faltava aos retornos e estava bem adaptado ao pensionato onde morava. R. já chegara a colocar verbalmente seu afeto pela psicóloga e o reconhecimento pelo trabalho desta.


Atendi R. até seus 18 anos, idade em que foi desabrigado, e que por completar a maioridade deixou de ter processo na vara. Antes porém, conversamos muito sobre isto, eu deixando sempre claro que ainda que não houvesse processo, eu estaria sempre disponível para atendê-lo. R. já estava trabalhando de aprendiz numa oficina, tendo condições de se manter. No nosso penúltimo encontro, o jovem me lembrou da data de seu aniversário, e me pediu um presente, aditando que iríamos ter o último retorno.


Entendi esse pedido não apenas como um teste para ver se eu realmente me importava com ele, mas também como uma necessidade de ter consigo, uma referência concreta do vínculo existente entre ambos.


No dia marcado lhe dei uma pequena máquina de calcular. Quando a viu, disse de imediato:"agora que vou ser independente vou precisar!"


Alguns meses depois, ele veio ao Fórum. Faz-se necessário aqui, um esclarecimento. A clientela quando retorna à Psicologia, costuma trazer o papelete de retorno que apresenta à escrevente, ou diz seu nome completo e o número do processo para que possa ser identificada, face à grande demanda de casos.


R. estava acostumado com isto e sempre fornecia seu sobrenome. Desta vez porém, eu fui comunicada pela escrevente de que um adolescente, R., estava lá e queria marcar um horário, sem ter fornecido mais dados.


Sem saber de quem se tratava fui até a porta, e deparei-me com ele. Sorri, e de imediato, comentei que fazia tempo que não nos víamos. O jovem então afirmou que não queria marcar horário, que estava bem, e que só havia passado por lá para dizer um alô.


R. ao não informar quem era criara uma situação surpresa, que eu comprendo como mais um teste para ver se eu não o esquecera, se eu estava mesmo disponível para ele. O meu sorriso, e comentário penso que foram suficientes para ele. Depois desta data, não mais nos vimos.


3- R., 32 anos, doméstica tem um filho de cinco anos abrigado. Os relatórios da obra descreviam uma mãe que comparecia as visitas, sem porém expressar afetividade, e nem brincar com seu filho. A genitora foi chamada à psicologia. Relatou seu histórico de vida, tendo sido criada por uma mãe adotiva. Tem contato com ambas, biológica e adotiva, mas não se sente pertencente à nenhuma família. Parecia estar revoltada com a vida, sentindo-se uma vítima. A genitora expressava claramente sentir-se só no mundo, e desconfiar das pessoas acreditando que seria rejeitada.


Apontei a ela sua conflitiva, e como isto refletia na relação com seu filho. R. concordou. Encaminhei-a para terapia, e soube no primeiro retorno marcado que estava em fila de espera.


A cada retorno, a genitora se abria uma pouco mais, e começou a verbalizar que se sentia compreendida pela minha pessoa. Neste ínterim, a genitora obteve um emprego com salário bom para sua função, na casa de uma senhora segundo ela muito rica e alcoólatra. R me dizia, que naquela experiência pode perceber como existiam pessoas muito mais infelizes do que ela, e que ela estava acordando para a realidade. A patroa não permitia que ela saísse para fazer terapia, havendo inclusive retornos à Vara que R. foi impedida de comparecer pelo mesmo motivo.


Vale notar que R. ansiava pelo retorno à Psicologia, e sempre que vinha trazia algum insigth. Contou que estabeleceu alguns vínculos de amizade fortes, o que anteriormente não possuía, e que estava se colocando muito mais à vontade com seu filho. Em telefonema à obra onde o mesmo se encontrava abrigado, fui informada pela Assistente Social, que a mãe mudara radicalmente o comportamento, estando o relacionamento entre ambos excelente.


A genitora em seus retornos parou de se queixar e começou a mostrar esforços no sentido de reestruturar-se para vir a desabrigar seu filho.O caso agora caminha para futuro desacolhimento, e R. sempre que está com algum problema telefona pedindo um horário, sentindo que eu me importo com ela e realmente estou disponível para ajudá-la.


Os exemplos por mim utilizados deixam claro, que apesar de não se fazer psicoterapia na Instituição é possível obter mudanças significativas nos casos. Penso que a mola propulsora para tal é o colocar-se como pessoa real, e atentar para a importância do vínculo que se estabelece entre psicólogo e cliente.


Este é o único setting, que acredito ser possível na Vara de Infância e Juventude.



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