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Uma Leitura Psicanalítica de nossa época

Autor: 
Susana Amalia Palácios,
Autor: 
Psicanalista, presidente do Instituto Tempos Modernos

Nossa época como qualquer outra tem sua própria subjetividade, ou seu próprio imaginário coletivo, em outras palavras a subjetividade não é jamais individual, nem se constitui ao nível do Um. Ela depende das respostas que os discursos de uma época impõem, reconhecem, garantem, aceitam ou assimilam.


Uma subjetividade é o que se organiza no laço social. Os discursos são laços sociais, constituem uma conciliação dos gozos, uma ordem com a qual cada época regula a convivência. Nesse sentido os discursos fazem a civilização aparelhando o gozo com a linguagem.


Os discursos que em nossa época imperam, com o imperativo "vamos" são o discurso da ciência e do capitalismo, discursos que marcam nossa cultura ocidental que tem como traço característico um certo extravio próprio de uma insaciável deriva da exigência pulsional.


O discurso da ciência, aspira a esgotar a questão da verdade com a verdade formal de sua escritura através de seus cálculos. O segundo discurso, o capitalismo, com a produção maciça e proliferação dos objetos técnicos, intenta garantir o bem estar e o progresso ordenando que as relações não sejam entre semelhantes e sim com os objetos de consumo o qual promove um autismo inédito na história da humanidade, na ilusão de obter uma completitude com parceiros conectáveis e desconectáveis, ingeridos ou cheirados.


É nesta esfera da ciência e do capital que nossa subjetividade está imersa. Nesta aletosfera (1) como a chamou Lacan, estamos mergulhados. Nela homens e mulheres procuram nos objetos (gadgets) partenaires com garantia de uso, recambio e troca, assim como outros encontram nas drogas (lícitas ou não), resíduos também da ciência, um gozo ao alcance da mão e assegurado.


Pois bem, nossa moderna subjetividade mostra a olhos nu o autismo que a caracteriza. Seu paradigma de moda é a figura do individualismo liberal o qual não é mas que uma nova forma de gozar que promove uma economia libidinal que transforma a cada um em homem-lobo apto para ser explorador de seus semelhantes. Um gozar que impõe "a lei" do mercado como vontade de obter vantagem em tudo. Gozo que produz democracias estéreis que deixam morrer de fome e doença seus povos, reduzindo homens e mulheres a serem só um número burocrático, o qual mostra a céu aberto que onde reina o capital só conta o voto do império financeiro (tomo aqui como referencia a declaração do mega investidor Sr. George Soros publicada pela Folha de São Paulo no dia 8 de junho de 2002). **


Temos então, por um lado o cientificismo que nos reduz a sermos puros corpos, feitos de órgãos e substâncias, e pelo outro lado ao capitalismo investindo nesta forma de conceber o corpo. Assim temos chegado a biologização do sofrimento e instrumentalização de uma lógica mercantil e veterinária que rechaça o propriamente humano. Como exemplo disto há uma propaganda na TV a cabo de uma campanha contra as doenças cardíacas, onde as imagens mostram diferentes animais correndo e pulando e uma voz em off que em castelhano diz: "Hacer como los animales no es tonto".


No campo da saúde mental estes discursos pressionam e impõem a extensão do uso de medicamentos contra a angustia, a ansiedade, a depressão e a insônia, sedativos que os indivíduos consomem para paliar seu mal-estar. Isto não é uma espécie de toxicomania socialmente aceita?


Os efeitos destes discursos são comparáveis a uma implossão, já que empurram às adições, ao fora do dizer, ao gozo solitário, à impotência.


Neste sentido, não é por acaso que hoje uma das formas em que o sintoma se nos apresenta na clínica, seja como patologia do trabalho nos dizeres: "não posso trabalhar", ou "não posso parar de trabalhar", onde como vemos o que conta é "não posso", fórmula da detenção do movimento.


Este novo modo em que se realiza nossa subjetividade não é gratuito, paga-se muito caro pretendendo e fingindo ser só viventes. Quando nossos contemporâneos explicam as paixões (alegria, tédio, ira, cólera, entusiasmo e outras), procurando a causalidade delas nos aminoácidos, nos genes ou nos hormônios, inauguram uma nova lógica, a da mecânica corporal, biologizando tanto o sofrimento quanto o sexual.


É o rechaço da dívida por ter-mos nascido sexuados como filhos do discurso, o que produz esta ideologia tóxica. Trata-se de um veneno que gera uma enorme nuançe de manifestações sintomáticas cada vez mas evidentes no social, trata-se do que constitui uma realidade, um sintoma social pela ruptura dos laços, dos vínculos o que, em algumas grandes cidades chega a ser de uma forma larvada, uma quase guerra civil.


Esta ignorância, este nada querer saber dos direitos dos sujeitos, embora as vezes estes discursos defendam os direitos humanos, hoje direitos só de alguns, é o que constitui o vicio radical que nos empurra ao exílio da língua animalizando-nos.


Nosso mundo ocidental sustido na ilusão de um saber absoluto, na crença de que o corpo está por fora dos laços com os outros, é um mundo que tem a certeza delirante de que a contingência da vida obedece exclusivamente ao programa do DNA. É assim que eleva a suposta autonomia do indivíduo a um valor paradigmático, um mundo que aposta na transparência da consciência considerada uma espécie de central de intenções e operações sabiamente exercidas.


Este mundo assim organizado produz o que bem podemos nomear de proletários do discurso, o que é um sintoma social, uma praga, uma epidemia que assassina em ato ou em potência o que nos é mas próprio. E quais são os efeitos próprios desta contaminação viral? O que vemos e escutamos quotidianamente, uma tristeza que se acasala ao mal humor, uma violenta irritabilidade quando não o tédio, que faz deslocar à vida em um tempo insignificante, um tempo que não passa ou que passa engolindo. A toda esta gama observável a olho nu, de uma patologia que é ética, nossos contemporâneos a classificam de estresse, depressão ou até sindrome do pânico.


O dito até agora nos mostra como é possível reduzir à existência a um organismo vivo. Assim o corpo está reconhecido como o único real comum a todos. Pois bem, neste caminho de um suposto e aspirado bem se faz retornar no indivíduo, pelo rechaço da dimensão propriamente humana, da singularidade que nos é própria à pura animalidade.


Esta é a via pela qual estamos transitando nas ultimas décadas, por isso o predomínio da imagem na nossa época com suas novas formas de consistência, por isto a consistência de um imaginário que se espelha em toda parte mais sem ser captado por nada, sem encontrar nada que lhe faça lastro. Os professores se queixam de que os alunos não lêem, os alunos de que os professores não estão nem ai, os pais que os filhos não falam, os filhos que os pais não os escutam. Como poderia produzir-se para eles uma realidade, si esta só tem curso quando sustida numa interlocução?


Pela historia (como historia das epidemias) sabemos que com o nazismo e seus campos de concentração, inaugura-se a redução do corpo ao real do objeto pronto, segundo esta lógica, para o extermínio. Esta obra continua até hoje produzindo dejetos, uma de suas formas atuais é pela exclusão do mercado de produção, nos quase campos de concentração que são hoje os cárceres, algumas instituições de menores, alguns asilos de velhos, de loucos e outros guetos embora sofisticados.


Como psicanalista não posso ficar calada ante tal desvario, sabendo que o corpo, baixo a forma do inconsciente tem outra forma de consistir, já que é pela palavra em função que alguém tem um corpo. Situadas estas questões e reconhecendo que o poder não descansa só sobre a força pura e simples, se me impõe uma pergunta: de onde tiram seu poder os discursos que hoje nos dominam? Se detive-se por aqui minhas reflexões, estaria afirmando que os valores morais de uma época só procedem dos ideais em curso. Mais há uma afinidade estrutural entre o objeto técnico, as formas de gozar de hoje e nossa subjetividade. O que quer dizer que os valores morais também encontram suas raízes no modo de satisfação pulsional que cada um obtém.


Então, se a satisfação pulsional contemporânea é a obtenção do gozo solitário com o objeto técnico, este é hoje o gozo do qual a humanidade ocidental não quer abrir mão, um gozo que a ração individualista se assegura a qualquer preço sim querer renunciar a ele nem curar-se dele. Não podemos deixar de ver que há um consentimento em cada um a respeito desta proposta universalizante da ciência e do capitalismo do mercado comum que propõem um gozo para todos sim querer saber do que em cada um é singular. Há um assentimento gozoso em cada um de não ser responsável nem pêlos atos, nem pelo desejo. Onde poderia este gozo do anonimato encontrar melhor álibi senão no determinismo genético?


É a atual encruzilhada que me anima a participar destes debates. E isto porque nos é necessário aos psicanalistas dizer e demostrar a insuficiência da ração e da necessidade para dar conta da realidade humana.


Se cada um de nos não renega sua própria experiência, pode reconhecer que a divisão que nos caracteriza não pode ser colmada pêlos objetos da técnica.


Não se trata de ir contra os avances da ciência, não só pelas tantas possibilidades que nos tem brindado e continuarão a brindar-nos, senão também porque seria impossível. Este poder não retrocede; se acumula. É por tudo isto que precisamos compensar as catástrofes de seus efeitos, precisamos mostrar os impasses que a diferença sexual impõe, precisamos reduzir em cada um de nos a quota da paixão da ignorância e do anonimato, a quota do cinismo que se sustenta cada vez que se acredita que: "diga o que dizer nada mudara".


Por sorte para nossa espécie o mercado ainda não absorveu nossos desejos e o sintoma insiste.


Refiro-me a esse algo que, em cada um, resiste a fazer o que lhe é prescrito pelo discurso do seu tempo, prescrição veiculada pelas vozes familiares, educativas ou do mercado que, através dos meios que estão a seu serviço, dizem-nos o que temos que consumir para ser homens, mulheres, crianças, adolescentes acordes ao nosso tempo.


Como ainda contamos com o sintoma, por tanto, com o que não se universaliza na modernidade, nos - os psicanalistas - perseveramos em nosso compromisso com a causa do inconsciente e não com a causa do mercado por que sabemos que a verdade é singular, própria de cada um e com a qual responde ao mal-estar.



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