Depoimento especial de crianças no Judiciário - Dilemas e controvérsias
Aproveitando a realização do XXVI Congresso Nacional da ABMP e de outros eventos que oportunizarão o debate sobre a inquirição de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, especialmente a sexual, o coletivo de entidades e profissionais das áreas de Serviço Social, Psicologia e Direito, signatárias deste manifesto, vem a público para externar suas preocupações em relação ao tema.
Em 2010 o Conselho Nacional de Justiça emitiu a Recomendação n. 33, na qual sugere aos Tribunais de Justiça que criem “serviços especializados para escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência nos processos judiciais”. Tal Recomendação veio na esteira da experiência lançada no Rio Grande do Sul no início dos anos 2000, conhecida como “Depoimento Sem Dano”, e que tem como objetivo substituir a audiência direta da criança ou adolescente vítima com o juiz, pela audiência indireta, sendo que o magistrado inquire a criança, geralmente por meio de um assistente social ou psicólogo, que permanecem em outra sala, interligada à sala de audiências por aparelhos de áudio e vídeo. Tal inquirição tem como objetivo principal a constituição de provas judiciais com vistas à punição do suposto abusador. Isto é, cabe à criança fornecer a prova para a aplicação da medida penal.
Desde então, multiplicaram-se as salas de depoimento especial de crianças pelo Brasil afora e, com elas, situações de verdadeiros abusos praticados agora pelo próprio Judiciário, uma vez que, de acordo com notícias relatadas aos órgãos de representação das categorias de assistentes sociais, psicólogos e outros, crianças chegam a ser inquiridas por quatro horas, são conduzidas coercitivamente quando não querem testemunhar e também são obrigadas a ouvir perguntas absolutamente impertinentes e revitimizadoras.
A despeito do tema do Depoimento Especial ter se mostrado controverso desde sua implementação, os Tribunais seguem utilizando-o e, agora, com riscos de expansão dessas salas.
Entre as controvérsias podemos destacar:
1. O objetivo principal do Depoimento Especial não é a proteção da criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência, mas sim a produção de prova para a responsabilização dos réus, colocando o ônus da prova na criança ou adolescente, passando de vítima à principal testemunha.
2. Há o pressuposto de que falar várias vezes é revitimização, o que nem sempre acontece quando a criança traz a revelação de forma espontânea. Revitimizante é a obrigação de falar. Ainda que se argumente que o Depoimento Especial procura reduzir o número de vezes em que a criança terá que falar sobre o que ocorreu com ela, pesquisadores já demonstraram que a exposição da criança em um contexto de audiência, em caráter obrigatório, mesmo que seja uma única vez, já produz sofrimento.
3. A prioridade é a produção da prova, tanto que em alguns Tribunais os profissionais já foram orientados a retirarem brinquedos das salas para que a criança “não se distraia e não saia do foco da câmera que a está filmando”;
4. Essa forma de colheita de prova não indiferencia a idade da criança, podendo ser utilizada até com crianças de três anos de idade;
5. Geralmente não se ouve o acusado, que, não raras vezes é membro da família, ou da família extensa da criança. Isso demonstra que a preocupação central é mesmo apenas com a produção da prova e não o estudo mais profundo sobre as relações familiares e sociais e a prevenção de outros possíveis abusos;
6. Não se leva em consideração os estudos científicos que demonstram a inadequação de se usar a memória traumatizada de uma criança para fazer prova contra alguém. Segundo esses estudos, essa prova é imprópria, seja para acusar alguém, seja para inocentar, uma vez que a imaturidade de desenvolvimento do córtex cerebral frontal influi na memória da criança e ela não é capaz de responder aquilo que a acusação ou a defesa gostariam, como por exemplo: se a pessoa era alta, baixa, estava com que cor de camisa, etc;
7. Propostas como essas têm sido utilizadas no Judiciário sem que se leve em consideração questões relacionadas ao estágio de desenvolvimento da criança e do adolescente e tampouco a complexidade do trato com famílias que estejam em litígios de alta conflituosidade;
8. O desenvolvimento psicoafetivo e a memória infanto-juvenil apresentam marcas de ambivalência de sentimentos e ambiguidades, especialmente em contextos de violência sexual, tendo em vista os vínculos de afeto e contradições do comportamento de agressores, bem como a dinâmica familiar, o que pode caracterizar relatos confusionais, em especial sob condições às quais não lhe são habituais, como nas audiências judiciais;
9. Considerando-se a idade em que a criança se encontra, sua memória caracteriza-se por um desenvolvimento não linear e cartesiano, do tipo sim e não, mas marcado por emoções e sentimentos muitas vezes ainda não discernidos, bem como por simbolizações iniciais, o que pode levar a confusões na significação de fatos vivenciados;
10. A compreensão de possíveis experiências sexuais vitimizadoras na infância necessita do auxílio de pessoas de confiança, que possibilitem a reorganização da experiência emocional, oportunizando auxílios em sua significação dos fatos;
11. A escuta em audiência é também inadequada por não levar em consideração o complexo fenômeno das manifestações sexuais na infância/adolescência. Por exemplo, os jogos sexuais entre crianças e adolescentes de idades não tão díspares poderão ser vistos equivocadamente como abuso sexual;
12. A proteção da criança pode ser melhor alcançada por estudos psicológicos e sociais, uma vez que os profissionais não trabalham necessariamente só com o depoimento da criança, mas principalmente com os “anticorpos” que ela criou perante o possível abuso e com todas as relações de seu universo familiar e comunitário. Do ponto de vista da atuação de profissionais do Serviço Social e da Psicologia, que geralmente compõem as equipes técnicas dos locais em que têm sido implantadas tais formas de inquirição, o Depoimento Especial aniquila sua autonomia, conferida por disposições legais e éticas reguladoras do exercício profissional, e começa a gerar uma situação em que passa-se a prescindir dos estudos técnicos que são realizados por eles, uma vez que vêm aumentando celeremente os casos de condenações baseados apenas na palavra da criança.
13. Do ponto de vista da Psicologia, a escuta, é incompatível com inquirição, visto que a Escuta Psicológica tem relação com o acolhimento, com o cuidado em acolher, compreender e trabalhar a demanda de forma ética, integral e a inquirição por si só se faz invasiva. A inquirição não se constitui em procedimento psicológico, mas configura-se como procedimento jurídico, baseado em interrogatórios e depoimentos para elucidar e provar possíveis fatos, buscando a verdade real e fática e se confirma como meio de provas para instruir lides;
14. A obrigação de falar sobre possíveis temas traumáticos de seu desenvolvimento psicoafetivo caracteriza-se como nova violência psicológica à criança, em especial na presença de pessoas que não lhe são próximas, sem a possibilidade de manifestações espontâneas, determinando novas memórias contraditórias e ambíguas cujas consequências para a vida adulta podem levar a agravos em sua saúde mental;
15. Outra questão a ser considerada é que vários magistrados da área criminal preferem ouvir diretamente a criança, sem utilização da metodologia do depoimento especial, possuindo grandes habilidades como interlocutores empáticos e conduzindo o inquérito com o devido respeito que esta merece, enquanto vítima de violência sexual;
Por todos esses motivos, os coletivos e profissionais signatários deste manifesto conclamam juízes, defensores,pPromotores e profissionais que atuam na área de defesa de direitos de crianças e adolescentes, bem como parlamentares e organizações que trabalham na defesa da criança e do adolescente, a dizerem NÃO à inquirição de crianças e adolescentes nos Tribunais, seja em forma de Depoimentos Especiais, “Sem Dano” ou procedimentos afins.
Assinam:
-Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
-Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos da Área Sociojurídica do Brasil
-Conselho Federal de Serviço Social
-Conselho Federal de Psicologia
-Conselho Regional de Serviço Social – 9ª Região
-Conselho Regional de Psicologia – 6ª Região
-Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos do Programa de Estudos Pós-graduados em Direito da PUC-SP -Assessoria Técnica Psicossocial da Defensoria Pública do Estado de São Paulo