Escuta Especial (Depoimento Sem Dano)- subsídios aos que não querem dela participar
O controvertido procedimento para inquirição de crianças vítimas de violência sexual, denominado inicialmente no Rio Grande do Sul de Depoimento Sem Dano, e depois, em outros Estados de Escuta Especial, Escuta Carinhosa, Escuta Protetiva entre outros, foi implantado em vários estados de nosso País, após a discutível Recomendação n. 33 do Conselho Nacional de Justiça.
A partir da análise dos riscos de revitimização da criança em tal procedimento, bem como da impropriedade de se utilizar o trabalho de assistentes sociais e psicólogos nessa inquirição, a AASPTJSP entrou com um Pedido de Providências junto ao CNJ para a suspenção do Protocolo do Tribunal de Justiça de São Paulo e estamos aguardando o posicionamento daquele Conselho.
Enquanto isso, importantes debates foram promovidos por nossa Associação tanto junto à cúpula dirigente da área da infância do Tribunal, como com Magistrados, Promotores e Defensores da área criminal e colegas da Rede de Proteção (como em Taubaté e Santo André e também em Belo Horizonte (MG) e Vitória (ES) sendo que outros ainda virão, como em Santos, em maio deste ano.
A cada análise e estudo que fazemos mais nos convencemos de que esta não é uma alternativa que deva ser utilizada com vistas a impedir a revitimização da criança. Principalmente, porque nesse procedimento judicial que ocorre em uma Vara Criminal, a criança é chamada a fazer prova contra alguém que, via de regra faz parte de suas relações afetivas, e o possível abuso ocorrido deveria ser trabalhado pela Justiça e pela rede de proteção de forma mais profunda e eficaz (do que simplesmente obrigá-la a depor para a produção de provas), no que diz respeito aos relacionamentos familiares e à gama de problemas aí envolvidos.
Não cabe aqui enumerar as dezenas de questões problemáticas que cercam esse procedimento de colheita de provas, como as relacionadas às falsas memórias, à duvidosa capacidade de crianças discorrerem com coerência sobre fatos ocorridos que possam ter-lhes causado traumas psíquicos etc. Mas o certo é que há confiável literatura sobre o tema que torna absolutamente duvidosa a eficácia do método implantado pelo CNJ sem grandes análises ou estudos.
No que diz respeito à participação de assistentes sociais e psicólogos nesse controvertido procedimento de inquirição, temos o claro e contundente posicionamento contrário dos dois Conselhos Profissionais tanto através de Resoluções como de respostas fundamentadas à Relatora do CNJ, no interior de nosso Pedido de Providências.
No tocante a atuação dos psicólogos, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo foi mais além, porque expediu Nota Técnica e a entregou também ao Núcleo de Apoio ao Serviço Social e Psicologia do Tribunal.
Pois bem, mas fica ainda a dúvida para muitos colegas de como deverão proceder diante da chamada de um Juiz para que participem da Escuta Especial. Eles podem recusar-se a participar, sem risco de serem alvo de um Processo Administrativo por desacato a ordem judicial?
Após esses vários debates e enfrentamentos de nossa Associação e de nossos Conselhos, podemos afirmar sem maiores dúvidas de que agora os colegas já contam com um arcabouço jurídico que lhes permite declinar de tal participação, sem correr os riscos de um processo administrativo.
Em primeiro lugar, é preciso demarcar a importância de o colega fundamentar à luz dos fundamentos teórico-metodológicos e éticos da profissão sua indicação de que a criança não seja submetida a essa Escuta apontando os riscos envolvidos nessa inquirição (sobre isso nossa Associação tem vasto material bibliográfico para consulta).
Além disso, orientamos que já existem Provimentos e Comunicados do próprio Tribunal que podem ser evocados como suporte desse posicionamento, como o Provimento do Conselho Superior Da Magistratura n. 2.236/2015 (publicado no Diário de Justiça Eletrônico em 23/01/2015) que diz textualmente em seu Parágrafo Único do Artigo 5º :
“Os psicólogos e assistentes sociais(...)gozarão de autonomia para indicar, de forma fundamentada, a conveniência ou não de proceder a escuta especial”. (grifo meu).
Ou seja, com esse Provimento, os Juízes devem acatar a indicação do assistente social ou do psicólogo se aquela vítima deverá ou não ser submetida à Escuta Especial.
Há também o Comunicado da Corregedoria Geral de Justiça n. 651/2014 que recomenda textualmente aos Magistrados que
“(...) não se determine aos referidos técnicos do juízo [assistentes sociais ou psicólogos] a produção de nenhum tipo de prova quer nos autos do inquérito policial, quer nos do processo penal (...).
Das normas referidas podemos concluir que o Tribunal de Justiça de São Paulo finalmente admite não ser nossa tarefa a persecução penal; esse é papel do Promotor de Justiça. A nossa atribuição é a de realizar o Estudo Social ou a Avaliação Psicológica que fundamentará nosso Parecer e nosso Laudo pericial.
Também poderemos a partir de agora alicerçar nossa recusa em participar da Escuta Especial na Resolução n. 169 do CONANDA ( de 13 de novembro de 2014), que diz textualmente, entre outras recomendações:
§ 2º do Art. 2º- O atendimento [da criança e/ou do adolescente realizado por órgãos e entidades do Sistema de Garantias de Direitos e do Sistema de Justiça] deverá ser uma prática ética e profissional, de acordo com a regulamentação dos respectivos órgãos profissionais, não podendo agravar o sofrimento psíquico de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de crimes, devendo-se respeitar o tempo e o silêncio de quem é ouvido, prevalecendo-se as medidas emergenciais de proteção.
E ainda:
§1º do Art. 3º- O atendimento deverá ser realizado, sempre que possível, por equipe técnica interprofissional, respeitando-se a autonomia técnica no manejo das intervenções.
Enfim, aos poucos conseguimos justificar, de forma fundamentada, nossa posição contrária ao procedimento de escuta pretendido pelo TJ-SP, porém sabemos que em nenhum momento o Tribunal vai reconhecer dentre outros aspectos, a inconstitucionalidade do Protocolo de São Paulo, por estabelecer procedimentos que somente podem ser regulados por lei processual, sendo que o tema está em debate no Congresso Nacional com a alteração do Código de Processo Penal; tampouco irá escrever com todas as letras: “fica revogado o Protocolo que instituiu a Escuta Especial”, pois reconhecer um erro nunca foi sua característica. Mas, por meio de Provimentos e Comunicados ele vai declarando isso nas entrelinhas do cotidiano do fazer da Justiça e basta-nos saber ler essas mensagens para podermos fundamentar nossos posicionamentos.
Assim foi com a Recomendação CG n. 1495/2014 que após várias gestões da AASPTJSP junto ao Tribunal, veio dispor claramente que “Psicólogos e assistentes sociais judiciários devem atuar como peritos do juízo e não como testemunhas”, cancelando, na prática, os efeitos do absurdo Comunicado Conjunto CGJ E CFS n. 01/2013 (de um ano antes) que trazia a equivocada assertiva de que “a oitiva de psicólogo judiciário, na qualidade de testemunha, é admissível”.
Em conclusão, podemos afirmar que em muito avançamos na garantia dos reais direitos de nossas crianças e na defesa de nossas atribuições profissionais! Os assistentes sociais e psicólogos do Tribunal de Justiça de São Paulo, organizados em sua Associação oferecem importante farol para os colegas do Brasil todo! Viva a Resistência!
(*) Agradeço às assessoras Dra. Sonia Guerra, advogada, Vilma Regina da Silva, assistente social, a revisão do texto e as contribuições para a melhor clareza da redação.